terça-feira, dezembro 20, 2005

tormentas

descansa onde as ondas se aninham em pequenos golpes que fazem espalhar o cabelo em carícias de mãos infinitas. no pequenos reflexos encontra-se de um lado e de outro de uma transparência serena. espraia o olhar pelo corpo nu envolto em texturas mansas, fundindo-se com algas e sal.
de súbito, um raio cai vindo de lá das órbitas conhecidas. explode a água e espalha por todo o lado os fragmentos do sossego. agora cortam a pele. agora são facas, as gotas que ainda há pouco lhe acariciavam o corpo, as suas gotas, perturbadas e tornadas lâminas frias.
o eco. rebenta no seu peito e rebate em todas as direcções, pressionando-a contra as frágeis fronteiras de si com o ar. enrola-se sem norte, sem sul, sem o sorriso de leste a oeste que se perdeu. procura uma estrela-guia que lhe diga que o raio se foi. mas o eco agita ainda as águas em bátegas de aço grotescas que se vomitam na sua pele enregelada. quer respirar em calmaria, evocando a suavidade das algas. agora prendem-lhe os movimentos e entorpecem-lhe os sentidos, provocam uma dormência dolorosa que a repugna. o eco. maldito, maldizente, venenoso. espalhava-se pelas veias, pulsando-as sem ordem, sem denominador comum.
cerra os punhos. não mais. não mais. chega. procura em si todo o medo e tristeza e condensa-os num só grito que prende atrás da garganta. nos soluços evoca o delírio que nas mãos trementes fecha. fecha em bolas de fogo ardente. quando não mais há a encontrar nos poros de força ou ímpeto, quando está já tudo nas mãos e na boca, despeja em lágrimas ardentes amargas o grito que voa acima dos rugidos e dos ecos.
todas as dores que nunca se permitiu doer nos olhos ali largou. no seu mar, que agora vibrava sem ritmo. as lágrimas caíram, desfazendo a acidez até serem apenas sal. do corpo corroído do choro, agora fraco e vazio, caiu na água. todo o negrume diluía-se agora na limpidez de pequenos mosaicos de cores vivas escurecidas. a estrela-guia mirou-a do alto, abençoando o alívio. deixando-a chorar as tristezas durante o tempo que precisou até conseguir adormecer no abraço quente do mar, agora manso, apesar das correntes que de vez em quando ainda a arrepiam. é só um calafrio. o mar está manso.
não voltará a acordar.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

corrente de ar

naquela frincha por onde entra o ar, o frio suspira nos ossos. quer-se agarrar essa frincha e preenchê-la com o calor dos dedos. os dias gritam à volta e naquela frincha desprendem-se pequenos ecos.
nesses momentos o melhor é abrir a porta. totalmente. e o vento que nos gele de uma vez. porque o calor do corpo combatê-lo-á. e vencerá. e o silêncio suaviza então os ecos e os sopros. e nua me disperso à janela depois.

terça-feira, novembro 08, 2005

a porta

há muitos anos, a noite era de vigília silenciosa cansada ao teu quarto.
os fantasmas cirandavam e eu não queria que te perturbassem os sonhos de menina.
ficava de olhos abertos na escuridão até a escuridão me abraçar por desgaste. acredita, não aguentava mais do que o tempo que os olhos se mantinham alerta.
mas tinha a sensação de que nada te tocava. que te guardava.
hoje as portas do teu quarto ficam fechadas. não sei se para evitar os pesadelos ou se para os deixar só aí dentro.
se para ouvires melhor o espanta-espíritos da maçaneta, ou se para não ouvires nada. tremo.
e penso, enquanto te puxo o edredon para perto das orelhas, e miro essa cascata dourada na almofada, que voltaram os dias de vigília.
um peso aperta-me o peito. de novo.
desta vez não posso falhar.

segunda-feira, novembro 07, 2005

... do escuro...

às vezes ainda tenho medo do escuro. quando as noites são demasiado curtas para o descanso, longas demais para o cansaço.
quando a mão não sente mais que o lençol frio, e no calor do corpo se agigantam transparências frias de ausência.
nesse não saber do lado de lá.
quando não sei de mim. e não sei onde me procurar.
reinvento no escuro as luzes das estrelas que me sossegam. mas estrelas inventadas pouco brilham na força débil do corpo salgado, arrefecido.
e o desejo pode apenas jazer na almofada, vazio. de olhos esbugalhados molhados doridos.
esperando que o dia acorde e o peso do peito aqueça com a luz do sol.
que virá. apesar de tudo, tem de vir.

segunda-feira, outubro 31, 2005

pelo sim, pelo nao...

nunca, mais, para sempre, agora, depois, nunca, voltar, logo...?
perder, ganhar, arriscar, jogo...?
dizer, calar, olhar, chorar, gritar, fechar, ondular, esperar...?
dar, perder...?
ego, umbigo, outro, fora, dentro...?
e se...?

a suspensão do beijo leva ao beijo seguinte ou a beijo nenhum...?

quarta-feira, setembro 28, 2005

o duende

um dia, devagarinho, ao fundo da estrada de pedras e terra batida, apareceu um duende, não sei de onde.
contava histórias. de velhos e novos. de pessoas encantadas.
vinha de olhos postos nos brilhos e nos pássaros, de sorriso em riste para o caminho.
sentou-se à minha frente, de olhar sereno sem culpas ou revoltas, sem perguntas. e olhou-me dentro de mim, sem eu ter barreiras a levantar.em silêncio, ficou assim, a ler-me a pele e os olhos.
ainda lá está, sentado na sexta pedra redonda a contar da última àrvore alta à direita.
conta-me estórias encantadas sempre que a alma me foge aos olhos e as tormentas não querem pacientar-me.
um amigo.

parabéns, miak.

sexta-feira, setembro 16, 2005

devagar...

sentindo as reticências que separam os hálitos, quentes...
doces ou suados, mas prementemente sôfregos.
o aperto na barriga aumenta até ao cume do momento que é o toque.
a descoberta surpreendente da macieza de uma pele estranha, de uma textura diferente. de uma humidade, de uma electricidade diferentes.
o cheiro que penetra à medida que penetram os lábios um no outro e descobrem no sentir a fome do desejo... sabemos que o beijo é perfeito quando nesse toque há, antes de tudo, um meio sorriso beijado...
e quando os lábios não se podem roçar mais, apertam-se. e quando não se podem apertar mais, deslizam até que as línguas se toquem, depois se rocem, depois se enrolem... num crescendo de volúpia até que os corpos fiquem satisfeitos...
enquanto...

segunda-feira, setembro 12, 2005

águas paradas

onde boia uma folha. pequena, suspensa no ar, parece. porque o líquido nem se agita naquelas pequenas ondulações. fica ali. sossegado, suportando a folhinha. à espera de outra brisa que a leve.

quarta-feira, agosto 31, 2005

falar...

... exorciza...
... precisar de mãos estendidas e de luzes de presença. precisar de sentir algo à volta, como uma brisa fina que faz sentir que existe exterior. que existo por oposição ao não sentir.
sensorial. uma palavra deitada no ouvido eleva a pele em arrepio. tece teias doces à volta do peito.
às vezes falar ajuda a largar o mapa e o norte de mim. para que não me reconheça.
às vezes falar despeja-me no chão como uma poça de água límpida e fresca. depois evaporo.

segunda-feira, agosto 29, 2005

reticências(...)

de caminhos. de opções e dúvidas. de olhares, de vidas, de entretantos.
porque nada é certo, não há verdade absoluta que nos entregue ao ser.
porque a cada bifurcação surge o entendimento, mas não a resolução.
são as reticências esse pedaço de certeza suspensa, a pergunta, o cheiro que não se reconhece. são o mistério e o meio sorriso. e o meio choro.
são a tal luz de presença.

terça-feira, agosto 23, 2005

pequenas coisas

dizia uma senhora de voz límpida numa canção foleira que gosto de dançar noite dentro no meio da rua: "assim são as coisas: quanto mais pequenas, mais ternas, mais suaves, mais maravilhosas".
assim são as coisas pequeninas, ínfimas, que despoletam um sorriso no meio dos dias tristes e inúteis. não passo um dia sem sorrir, várias vezes ao dia.
já me perguntaram, surpreendidíssimos, se a vida me dava assim tantas razões para isso.
a minha resposta é uma pergunta: e há assim tantas razões para negar um sorriso? a um empregado simpático, a uma criança de olhar de chucha, a um dia brilhante, a um cão bem-disposto, a uma situação caricata, a um turista a pedir informações, ao sabor de um gelado, ao andar pesado da empregada da limpeza do escritório?
porque eu gosto, ao fim do dia, que me recebam com um sorriso, mesmo que cansado. se for franco, é a melhor coisa do mundo.
é por achar que o mundo não nos compreende que por vezes perdemos as oportunidades de nos darmos a conhecer. ou apenas de disfrutar um centésimo de segundo mais simpático.
eu preciso disso. preciso de me acarinhar.

segunda-feira, agosto 22, 2005

luz de presença...

permanece ao longe. entre corredores e portas onde os monstros se alojaram. mas é nessa luzinha fraca, alaranjada, que reside a esperança dos dias.
que renasce da dormência a mente estagnada.
é nessa luz que prendo os olhos todas as noites antes de adormecer, a cujo brilho frágil dedico as minhas preces, pois é ela que me vela os sonhos e pensares. nela me envolvo de laranja quente, nela abrando a respiração.
porque me lambe as feridas devagarinho, dando-lhes ar para cicatrizar.
é nesse brilho sossegado de olhos meigos que a paz retorna aos poucos.
nela fico suspensa no ar, rezando que a próxima queda não venha, e se vier, venha mais branda.
porque é preciso tempo para recuperar. tempo descansado, sonos profundos e dias azuis.

começa sempre assim...

... uma mão estendida, à procura.

os lençóis revoltos, frios, mesmo ao lado do corpo alagado em suor.

andar pelas ruas em sorrisos e, de repente, a queda. cair, cair, sem parar, sem perceber. sem perceber o corpo, a sua fraqueza súbita. sem perceber que peso é aquele no peito, que dormência aplaca as mãos.

sem motivo aparente, porque os motivos são tantos, pequeninos, acumular de dores esquecidas, relativizadas. pela cabeça, não pelo coração.

estender a mão.
alguém que me abrace, estou a cair.

se surgir o abraço, a união é eterna...